Esse texto é o trecho de um livro chamado O CAMINHO DO CORAÇÃO, de Ricardo
Barbosa de Souza. E nesse trecho, o autor analisa o que Segundo Galilea (sim, esse é o nome dele), que foi um sacerdote
católico chileno que nasceu em Santiago em 1928, ordenado padre em 1956, no México
e Equador, pensava sobre o deserto
na experiência espiritual e o que ele significa, em pelo menos quatro coisas.
aproveite a leitura, e reflita, muito:
Primeiro: “uma experiência do absoluto de Deus e do
relativo de tudo mais, incluídas ai as pessoas e nós mesmos”. É no
deserto que nos encontramos sós diante de Deus. Ali não existe nenhuma outra
alternativa, senão Deus somente. Todas as outras coisas são relativizadas,
colocadas no seu devido lugar, e somente Deus pode dar sentido a elas. Jó, no
meio da sua crise, viu-se exatamente assim. Não havia mais nada, a não ser
Deus. Todos os seus valores, bens, família, teologia, foram relativizados. Sua
única esperança era que Deus mesmo viesse ao seu encontro revelando a gratuidade
da sua graça. Deserto significa espera, silencio encontro para poder dizer: “Eu te conhecia
só de ouvir, mas agora os meus olhos te vêem” (Jó 42:5).
Por isso torna-se necessário para
todos os cristãos promoverem sua experiência pessoal de deserto. Separar um
momento ou criar situações onde seja possível relativizar aquilo que facilmente
absolutizamos em nossa vida. Ou seja, colocar o trabalho, a família, o dinheiro,
o status, o lazer, o ministério, a igreja, as experiências espirituais no seu
devido lugar. Não permitir que nenhuma destas realidades da vida ocupe o lugar
soberano de Deus na nossa alma.
Infelizmente, não aprendemos a cultivar
nosso deserto voluntariamente. Invariavelmente somos levados a ela em virtude
de crises ou sofrimentos que se instalam no nosso caminho, e que nos levam
muitas vezes a uma reação de inconformismo e rebeldia e não de aprendizado e
renuncia. Normalmente, um paciente em estado terminal ou se revolta com a
injustiça da situação em que se encontra, ou, humildemente, reconhece a
fragilidade da existência humana e aprende, mesmo que num processo doloroso, a
colocar as coisas no seu devido lugar.
Segundo: “o deserto é o lugar da autenticidade e da
verdade”. Sendo um lugar de solidão, é também o lugar do encontro
conosco mesmo, com nossas mentiras e ilusões. Vemo-nos como Deus nos vê. Ali
não temos para onde correr nem esconder. A ambigüidade das nossas motivações
vem à tona, e todas aquelas ambições que nos ocupam dia e noite, como
realização, poder, riqueza, profissão, prestigio e conhecimento, perdem seu
poder de enganar e desviando-nos da verdade. É no deserto que se dá a nossa
conversão e santificação. “O
deserto é o caminho da libertação interior, onde Deus fala ao coração e onde o
espírito do mundo, que nos fascina, pode emudecer” Galilea.
Um dos textos bíblicos que melhor
definem o propósito pedagógico do deserto encontra-se em Deuteronômio 8:2, que
diz: “Lembre-se
de como o Senhor, o seu Deus, os conduziu por todo o caminho no deserto,
durante estes quarenta anos, para humilhá-los e colocá-los a prova, a fim de
conhecer suas intenções, se iriam obedecer aos seus mandamentos ou não.”
A finalidade dos quarenta anos no deserto para o povo hebreu foi a de revelar
os segredos da coroação e expor suas mentiras e ilusões. Um dos grandes obstáculos à
espiritualidade cristã são nossas próprias ilusões.
Terceiro: “o deserto nos abre
a verdadeira solidariedade e misericórdia para com o irmão, ensina-nos a amar
verdadeiramente”. Ao sermos confrontados conosco mesmos, e ao
relativizarmos tudo, passamos a experimentar uma nova relação com o próximo. O
deserto proporciona uma consciência mais real e verdadeira sobre mim mesmo e
isso me livra de julgar os outros, de criticá-los, de sentir-me superior. Por
outro lado, ao relativizar tudo, minha percepção do próximo deixa de ser determinada
pelo que ele tem ou faz, para ser determinada por quem ele é. O
pobre deixa de ser um problema ou mesmo um objeto da minha ação missionária e
pastoral, e passa a ser uma pessoa com a qual eu me relaciono em amor e afeto.
O
deserto tem o poder de humilhar-nos, de fazer-nos reconhecer e aceitar quem
realmente somos.
A competitividade e
individualismo são os obstáculos maiores que encontramos no caminho do amor e
do relacionamento pessoal. O deserto, na experiência monástica, tinha o poder
de resgatar a virtude do amor e da humildade, uma vez que ali não havia estes
dois elementos tão nocivos ao relacionamento pessoal. A partir do momento em
que tudo o que temos somos nós, nosso próximo e Deus, só nos resta então a
alternativa do amor. O deserto elimina tudo aquilo que se coloca
entre nós e o nosso próximo.
Quarto: “o deserto é o lugar
da tentação e da crise, e sua superação”. Da mesma forma que para
Jó, o deserto é o lugar do encontro com Deus, mas também com o demônio. Deus e
o diabo estavam presentes na crise de Jó. O deserto era a oportunidade de Jó
escolher se seguiria com Deus, apenas pelo desejo de amá-lo e servi-lo, ou se
fechar dentro de si mesmo, dando ao diabo o prazer da vitória. Ir
para o deserto é expor-se a tentação, a semelhança de Cristo. È ali que vamos
definir se iremos ceder aos caprichos e seduções do diabo ou se vamos render a
mais completa obediência e submissão ao Pai.
“É por tudo isso que o deserto nos prepara para superar não só os
desertos da condição humana, mas também as tentações e crises ‘as quais somos
mais vulneráveis no decorrer da nossa vida cotidiana. Pois a forma com que
tenhamos reconhecido e rejeitado a sedução do demônio do deserto nos dá a
atitude e fortaleza para reconhecê-lo e rejeita-lo na caminho da nossa vida.”
Galilea.
A verdadeira guerra espiritual é
aquela que se dá no deserto, no silencio do nosso quarto, no momento em que nos
retiramos das inúmeras atividades do dia-a-dia. É ali que somos confrontados
com nossas ambições, com a futilidade dos nossos caprichos. Ao ser tentado pelo
diabo para deter-se apenas naquilo que realmente daria sentido a sua vida e
missão. A sedução do poder e da gloria foi resistida pela humildade da
obediência.
O deserto, na linguagem bíblica,
significa confronto, luta, tentação, despojamento e entrega. É o
lugar onde não apenas resgatamos os propósitos originais da fé cristã que, com
o tempo, se deterioram e são corrompidos, mas também o lugar do nosso encontro
com Deus e conosco mesmo. Quando a igreja encontra-se numa fase de
prosperidade é preciso ter cuidado. A história já mostrou-nos diversas vezes o
tamanho deste risco. Não podemos e nem devemos impedir o crescimento e
prosperidade do evangelho, mas isto nunca deve ser alcançado pondo em risco a
natureza da fé que vivemos hoje, reencontrar o lugar e significado do deserto a
fim de preservarmos a fé apostólica para as gerações que nos seguirão.
O deserto espiritual é esta
experiência de encontro com Deus, onde tudo o que não é Deus se desfaz para que
a alma humana o contemple e adore. Sendo assim, o deserto torna-se
imprescindível para a sociedade moderna como caminho para expurgar tudo aquilo
que confunde nossa alma e coração. “Fizeste-nos para ti, ó Deus, e nossa alma
não repousará tranqüila enquanto não repousar em Ti”. Foi assim que Santo
Agostinho expressou seu desejo por Deus. Nossa fome é de Deus, nossa busca é por
Deus. Nossa alma não se satisfará com nenhuma outra coisa que não seja Deus
mesmo. Por isso o deserto é a opção para todos os que desejam este encontro com
Deus. É lá, sem as distrações do mundo, que nossa alma o verá e se deleitará
nele.
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